Guarda negra.
CAPOEIRA E POLÍTICA.
UM DOS FENÔMENOS MAIS COMENTADOS – E MENOS ESTUDADOS – DA HISTÓRIA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL, AO FINAL DO SÉCULO XIX, FOI A CHAMADA GUARDA NEGRA. A IMAGEM POPULAR QUE SOBREVIVEU DESSE EPISÓDIO É A DE GRUPOS DE EX-ESCRAVOS QUE, AGRADECIDOS PELO DECRETO QUE PÔS FIM À ESCRAVIDÃO NO IMPÉRIO DO BRASIL, ASSINADO PELA REGENTE DO TRONO, A PRINCESA ISABEL, SE MOBILIZARAM CONTRA OS ADVERSÁRIOS DO REGIME MONÁRQUICO, IMPUTANDO A ESTES A VONTADE DE DERRUBAR A COROA, COMO REFLEXO DO INCONFORMISMO COM A LEI ÁUREA.
Vista por décadas como manifestação trazida da África, desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdios da colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmares até alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeira lentamente passa a ser relida como criação da cultura escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretos nascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seu espaço de atuação nas vilas e cidades do último século da colonização portuguesa.
De forma de resistência aos senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como instrumento de dissuasão dos conflitos internos dentro da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), passa a ser vista como elemento indispensável no controle por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulantes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria ou serviços no espaço público) controlavam o comércio informal da cidade colonial. Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últimos anos por uma verdadeira metamorfose de significados (se bem que não consensuais dentro da comunidade de pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas que se abriram nos últimos tempos.
Em meu trabalho esforço-me em mostrar o peso que a Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada na capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico do Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos anos, essa guerra abriu caminho para transformações que acabaram levando ao colapso da ordem monárquica.
No fragor do combate, ela teve um impactono imaginário da sociedade brasileira que perduraria por décadas. Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cidade do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores,que
vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em busca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados, os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar as fardas do exército imperial nos campos do sul. No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador.
Nos campos da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda. A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como marginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um desacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo “tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar). Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.
Mas a elite política tinha outros planos. Impressionados pela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos oficiais comissionados, agora membros da elite política da cidade do Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar os ex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposição das novas refregas do tempo de paz. Às símbolos, a capoeira entra no palco da política. Não a micropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüenta anos do século XIX, mas a política dos salões, dos partidos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento, das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regime parlamentarista. Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira que dominava o bairro da Glória. Arregimentada por um importante membro do Partido Conservador – Duque-Estrada Teixeira, de tradicional família política – ela entra nos embates da alta política na eleição de 1872. A golpes de navalha, rasteira, rabos de arraia e cabeçadas, os capoeiras da Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio Paraguai – varreram os eleitores liberais das urnas, e os candidatos opositores dos palanques.
A vitória de Duque-Estrada para a Câmara de Deputados lançou um novo jargão na imprensa política da época: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando DuqueEstrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da minha gente, da flor da minha gente.” Esse apelido percorreria vinte anos da vida política da cidade do Rio. Esses capoeiras não agiam somente a soldo, como denunciava a imprensa liberal da época. Eles eram também mobilizados pela crise da escravidão, que era mundial. Nos Estados Unidos, uma guerra civil tinha irrompido quando o presidente eleito Lincoln deixou claro seus planos emancipacionistas.
A derrota dos confederados deixou a elite brasileira sozinha no continente como mantenedora do regime do cativeiro nas Américas. A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871), apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve forte impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem livres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatida por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II, sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do Rio de Janeiro. Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estranha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a ordem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de proteção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido. Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e atacavam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as urnas fingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o que costumava romper em grossa pancadaria. Também compravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos opositores era certa
Essa fama política logo se alastrou para outros campos.
O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha claramente se deslocado para São Paulo, deixando para a província fluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “novos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial, amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos do Nordeste e do Norte.
Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em 1870, era uma agremiação insignifi cante, mas que reunia membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A República fazia constantes ataques ao governo conservador. É nesse contexto que temos que entender o primeiro conflito envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empastelamento” do A República. Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de DuqueEstrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promiscuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pedras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado de cumplicidade. Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na
Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo – trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha que não deu em nada. Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra estava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abolicionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido Republicano, eram conhecidos como irados senhores de escravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordeste para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba. Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa de conveniências políticas: para os defensores, era constrangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa política como autoritários e criminosos, como eram vistos os capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembranças do passado escravista de alguns políticos “liberais”. Assim, ambos os formadores de opinião pública da época eram incapazes de compreender a raiz mais profunda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percorria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-se da súbita impopularidade da monarquia frente às classes proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimentos “semoventes”. Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta platéia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar a “corja de assassinos”.
Cercados, eles sabiam que a saída seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia – cuja chefi a ficava a alguns metros – foi totalmente omissa. Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com conhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso meses antes. Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana, grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à imagem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontispício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a construção da estação central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil).
Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças à ligação com políticos importantes da Corte. Eles foram fichados e os informes de jornais indicavam que seriam recrutados para o Exército – como seus antecessores da década de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia seguinte. Seus nomes aparecem nas fichas de entrada da Casa de Detenção da Corte, o grande presídio da cidade. Esses mesmos nomes aparecerão, em primeiro de janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente as fichas da Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre – como asseclas do bando que cercou a Sociedade Francesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois eventos estão relacionados, assim como a campanha de recrutamento da Guerra do Paraguai tem relação com a politização da capoeira na década de 1870.
O que une os dois eventos é o que a imprensa do período chamou de Partido Capoeira: uma forma de atuação política – antes que um grupo específico – centrada na aliança entre políticos conservadores e capoeiras egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por canais subterrâneos, embora povoassem a imprensa do País por quase vinte anos. Esse Partido Capoeira expressava interesses imediatos de grupos urbanos marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial.
Essa é outra dimensão da Guarda Negra, ainda não trabalhada pelos estudiosos modernos: ela é a primeira instituição que utiliza o termo negro no sentido positivo e político da palavra, e autonomeado. Em outras palavras, negro durante séculos foi palavra fortemente pejorativa, que remetia a escravo, fraqueza, incapacidade de luta, submissão. Africanos e crioulos ofendiam-se mutuamente no Brasil, chamando-se de negros.
Esse uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Estados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do movimento negro (sic) americano. A palavra passa a ter um sentido político, não por coincidência no momento histórico em que os crioulos se tornam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros livres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráfico atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos imprimidos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam na noção de raça negrana cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos, de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma conspiração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na imprensa representando essa parte normalmente excluída da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ganhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pagos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca de violência e brigas.
As mesmas acusações dos capoeiras da Flor da Gente em outros tempos. Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da ordem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chamados os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limitações impostas pela sociedade “liberal” burguesa. O clima de guerra racial instaurado na época da Guarda Negra deve ter sido elemento importante no imaginário da alta ofi cialidade brasileira às vésperas do levante que pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso da Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês do conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Visconde de Ouro Preto. O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia ainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha uma péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da população, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade, enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição – republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abolicionista e republicana. Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a chefia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou seus planos em ação. Há tempos Sampaio acompanhava como promotor público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regime e a instalação de um governo provisório ditatorial era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.
Antes que um fenômeno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de 1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira, que, somente há poucos anos, começou a ter sua história retirada das sombras: a capoeira.
De forma de resistência aos senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como instrumento de dissuasão dos conflitos internos dentro da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), passa a ser vista como elemento indispensável no controle por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulantes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria ou serviços no espaço público) controlavam o comércio informal da cidade colonial. Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últimos anos por uma verdadeira metamorfose de significados (se bem que não consensuais dentro da comunidade de pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas que se abriram nos últimos tempos.
Em meu trabalho esforço-me em mostrar o peso que a Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada na capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico do Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos anos, essa guerra abriu caminho para transformações que acabaram levando ao colapso da ordem monárquica.
No fragor do combate, ela teve um impactono imaginário da sociedade brasileira que perduraria por décadas. Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cidade do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores,que
vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em busca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados, os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar as fardas do exército imperial nos campos do sul. No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador.
Nos campos da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda. A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como marginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um desacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo “tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar). Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.
A vitória de Duque-Estrada para a Câmara de Deputados lançou um novo jargão na imprensa política da época: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando DuqueEstrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da minha gente, da flor da minha gente.” Esse apelido percorreria vinte anos da vida política da cidade do Rio. Esses capoeiras não agiam somente a soldo, como denunciava a imprensa liberal da época. Eles eram também mobilizados pela crise da escravidão, que era mundial. Nos Estados Unidos, uma guerra civil tinha irrompido quando o presidente eleito Lincoln deixou claro seus planos emancipacionistas.
A derrota dos confederados deixou a elite brasileira sozinha no continente como mantenedora do regime do cativeiro nas Américas. A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871), apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve forte impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem livres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatida por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II, sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do Rio de Janeiro. Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estranha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a ordem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de proteção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido. Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e atacavam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as urnas fingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o que costumava romper em grossa pancadaria. Também compravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos opositores era certa
Essa fama política logo se alastrou para outros campos.
O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha claramente se deslocado para São Paulo, deixando para a província fluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “novos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial, amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos do Nordeste e do Norte.
Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em 1870, era uma agremiação insignifi cante, mas que reunia membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A República fazia constantes ataques ao governo conservador. É nesse contexto que temos que entender o primeiro conflito envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empastelamento” do A República. Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de DuqueEstrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promiscuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pedras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado de cumplicidade. Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na
Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo – trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha que não deu em nada. Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra estava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abolicionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido Republicano, eram conhecidos como irados senhores de escravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordeste para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba. Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa de conveniências políticas: para os defensores, era constrangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa política como autoritários e criminosos, como eram vistos os capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembranças do passado escravista de alguns políticos “liberais”. Assim, ambos os formadores de opinião pública da época eram incapazes de compreender a raiz mais profunda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percorria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-se da súbita impopularidade da monarquia frente às classes proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimentos “semoventes”. Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta platéia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar a “corja de assassinos”.
Cercados, eles sabiam que a saída seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia – cuja chefi a ficava a alguns metros – foi totalmente omissa. Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com conhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso meses antes. Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana, grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à imagem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontispício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a construção da estação central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil).
Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças à ligação com políticos importantes da Corte. Eles foram fichados e os informes de jornais indicavam que seriam recrutados para o Exército – como seus antecessores da década de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia seguinte. Seus nomes aparecem nas fichas de entrada da Casa de Detenção da Corte, o grande presídio da cidade. Esses mesmos nomes aparecerão, em primeiro de janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente as fichas da Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre – como asseclas do bando que cercou a Sociedade Francesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois eventos estão relacionados, assim como a campanha de recrutamento da Guerra do Paraguai tem relação com a politização da capoeira na década de 1870.
O que une os dois eventos é o que a imprensa do período chamou de Partido Capoeira: uma forma de atuação política – antes que um grupo específico – centrada na aliança entre políticos conservadores e capoeiras egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por canais subterrâneos, embora povoassem a imprensa do País por quase vinte anos. Esse Partido Capoeira expressava interesses imediatos de grupos urbanos marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial.
Essa é outra dimensão da Guarda Negra, ainda não trabalhada pelos estudiosos modernos: ela é a primeira instituição que utiliza o termo negro no sentido positivo e político da palavra, e autonomeado. Em outras palavras, negro durante séculos foi palavra fortemente pejorativa, que remetia a escravo, fraqueza, incapacidade de luta, submissão. Africanos e crioulos ofendiam-se mutuamente no Brasil, chamando-se de negros.
Esse uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Estados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do movimento negro (sic) americano. A palavra passa a ter um sentido político, não por coincidência no momento histórico em que os crioulos se tornam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros livres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráfico atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos imprimidos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam na noção de raça negrana cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos, de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma conspiração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na imprensa representando essa parte normalmente excluída da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ganhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pagos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca de violência e brigas.
As mesmas acusações dos capoeiras da Flor da Gente em outros tempos. Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da ordem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chamados os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limitações impostas pela sociedade “liberal” burguesa. O clima de guerra racial instaurado na época da Guarda Negra deve ter sido elemento importante no imaginário da alta ofi cialidade brasileira às vésperas do levante que pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso da Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês do conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Visconde de Ouro Preto. O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia ainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha uma péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da população, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade, enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição – republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abolicionista e republicana. Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a chefia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou seus planos em ação. Há tempos Sampaio acompanhava como promotor público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regime e a instalação de um governo provisório ditatorial era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.
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