Contexto histórico da nossa luta.
A repressão à capoeira
Frederico José de Abreu
Esse material é de pesquisa diaria.
Está no site http//dc.itamaraty. governo.br
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NÃO SE SABE PRECISAR AO CERTO QUANDO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA DE REPRESSÃO À CAPOEIRA. NESTE ARTIGO, PARA ABORDAR O ASSUNTO, VAMOS COMEÇAR PELO SÉCULO XIX, MAIS PRECISAMENTE A PARTIR DO SEU INÍCIO, QUANDO SE INTENSIFICA NO BRASIL O CONTROLE SOBRE OS BATUQUES NEGROS, NO MOMENTO EM QUE A SOCIEDADE ESCRAVOCRATA SOBRE ELES SE TORNOU MAIS VIGILANTE.
Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identifi cava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra.
Nessa época, batuque era um termo genérico, com o qual se denominavam indistintamente manifestações negras que se expressavam, quase sempre, mediante a união da percussão com a dança. O canto também entrava nessa combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ou profana, as quais podiam acontecer em separado, uma de cada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé, capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de distintos entre si, podiam ser todos denominados batuque. Parte signifi cativa das observações históricas que obtivemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e às impressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziram documentos essenciais para identificar características concernentes aos usos e costumes dos negros, fossem eles escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nascidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma constatação muito comum entre os estrangeiros, principalmente quando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada, e incrementadas pelo tráfi co de escravos, até a completa extinção deste em 1871. Nelas, predominava a população negra, indispensável para o funcionamento da dinâmica da vida urbana e principal responsável pelos movimentos das ruas. Por essas condições, essas cidades se transformaram em campos férteis para os batuques. Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas históricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusão da capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifestação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados do XX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfi co interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identifi cava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangeiros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais da época, a crônica policial e a documentação judicial, dentre outras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão à sua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pela capoeira em sua história. Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou um contexto sociopolítico agitado e permeado por movimentos, confl itos e guerras pela independência, os quais culminaram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal, em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, tais como a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Cabanagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada (1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologicamente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movimento rebelde defl agrado em Salvador, que incorporou anseios de liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna (os escravos), atraída para dela participar com aspirações de extinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidade política, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravas que aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto nas zonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmente em Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e a contigüidade geográfi ca desses acontecimentos na capital baiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, de um vigoroso cotidiano de rebeldia escrava. A vigência de um clima de conspiração negra – evidentemente – pôs em alerta as autoridades e a população de Salvador, receosa da animosidade reinante, quase sempre definida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Para combater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforço no sentido de identifi car suas causas; dentre elas estavam os batuques negros. Proibir as manifestações que compunham os batuques não era uma questão de fácil resolução, como comprovava a renitente desobediência por parte dos negros em usarem atabaques e também marimbas dentro dos muros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidos por posturas municipais, datadas de 1716, que, por força de lei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da cidade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percussivos provocadores de sons época atos para os batuques. Uma situação limite colocava-se perante a sociedade escravocrata, dependente do escravo para sobreviver: como poderia tal sociedade proibir os escravos de praticarem manifestações para eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e que a essa sociedade provocava tantos incômodos e temores? Que incômodos e temores eram esses? Poderiam ser captados nas queixas da população em jornais da época: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversas nações africanas, falavam, dançavam e cantavam canções gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “divertimentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárbaros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”; “cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… As queixas não se limitavam a desqualifi car as manifestações culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusavam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a prática dos batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses negros exerciam – mesmo que precária e momentaneamente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que esses batuques aconteciam. Como era de costume e quando permitido, as manifestações negras, mesmo às margens do

centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festas de rua do calendário católico. De acordo com as queixas, nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predominavam não se escutando nenhum outro”. Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a importância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivez que essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantes estrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram, admiravam-se com a animação e a disposição com que os escravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jornada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessem diante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela disposição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpretados como fontes de prazer, completando-se como função regeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada do trabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, um desses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não conseguimos nos persuadir de que são escravos que temos diante dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afi rmar que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folguedos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperar sua humanidade brutalizada pela escravidão. Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques. Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumentavam serem os escravos também fi lhos de Deus e, por assim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmo alguns senhores viam nos batuques uma oportunidade para os escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da sua triste condição: o prazer para esconder a dor. Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-se como um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, considerando o contexto histórico da época. Pela existência de um cotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigor tentava evitar todas as atividades que pudessem provocar ajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbita e da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enquadravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavam ajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como suspeitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras das revoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época. Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades governamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos, parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e infl uir na decisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam. Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade da situação exposta nas queixas e ao se associar os batuques ao cotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque, desde a criação do Calabouço, em 1767, local público de castigos dos escravos, os senhores não eram mais estimulados a castigar os seus escravos privadamente e o controle dos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietários, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policial a ele subordinado.
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