Repressão da sociedade e seus principais fatores.
A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890.


Naquele tempo, como o sistema escravocrata só podia funcionar dependente da exploração de trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os batuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexidades e reclamações dos que se achavam por eles perturbados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibições impostas pelas posturas municipais, nem os estragos que as perseguições policiais lhes infligiram, conseguiram interromper o curso da sua história embalada pela incrível força que têm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria o compositor e cantor brasileiro Caetano Veloso. Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meio delas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, preconceito amplamente absorvido e difundido pelas elites dominantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX, e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba, candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizador que desejavam, por não estarem concernentes aos costumes e procedimentos públicos dos países por elas considerados mais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome desse preconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar das zonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, como para proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentado por uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, pois o modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoriamente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Na verdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico, a modernização e transformação urbana que se registravam nas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que se tinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho e sua organização: a escravidão, condição humana considerada, àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para um estrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecendo-lhe um modelo europeizado. A escravidão era suficiente para reverter essa expectativa. Nessa exposição generalizada de combate ao batuque, feita até aqui, podem-se identificar os elementos que nortearam as ações repressivas às manifestações negras. Necessário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestações enfrentou contextos específicos, como também particulares foram as ações de resistência vivenciadas pelos praticantes de cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar do signifi cativo número dos elementos comuns que possuíam, tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. Sobre essa manifestação encontram-se, desde antes do século XIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-se também notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tão implícito à antigüidade da capoeira que a história desse tempo, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas principais fontes a crônica e a documentação policial. Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidos na narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a
visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadas essas precauções, pode-se, por meio desses documentos, perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos de comportamento social e hábitos, as maneiras como se tratavam, as gírias, a geografia urbana por eles permeada, as armas utilizadas, dados biográficos, dados sobre a cor, a etnia, o vestuário, a ocupação, a profissão, os rituais de conflitos entre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentos oportunos para expressarem sua arte. A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederamse muitos conflitos entre os capoeiristas e a polícia. Confl itos agravados de tal ordem que poderemos defi nir esse período (compreendido entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso, tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas. As tradições da capoeira nessas cidades eram muito parecidas não só na forma de se expressarem, mas também na equivalência do comportamento social dos seus praticantes. Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadores de rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, feirantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (estivadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentre as ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas consideradas como próprias de vadios e vagabundos, como pescadores, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-se também da predileção dedicada aos ambientes festivos. Contraditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receio da presença dos capoeiras nas festas populares, seu comparecimento era considerado essencial para a animação da parte profana das festas, juntamente com o pessoal do samba, como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quando eram acusados pelos tumultos provocados nessas festas. Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo, muito embora tivesse variado em grau de um para outro local, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressão se deu por meio da proibição da prática da capoeira, por posturas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas arbitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhos forçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o recrutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas remontáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda não havia forças armadas profi ssionalizadas e o recrutamento se dava na ruas e tinha como foco os considerados malandros, vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exército e a Marinha confi guraram-se como casas de correção de menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negros escravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então, ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que a campanha governamental visava à formação do contingente de “Voluntários da Pátria”, do qual fi zeram parte capoeiras em defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870). É necessário dizer que a política e as ações de repressão à capoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela polícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valentões, vadios e malandros. Tipifi cação essa na qual certamente não se enquadravam todos os capoeiras e que não era extensiva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, policiais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-se incluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo familiar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente de liberdade e se entregavam à prática da capoeira como forma de divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para se situarem e se afi rmarem no espaço da rua. Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontravam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéia de que a capoeira era uma ginástica saudável e uma luta eficiente e que os elementos perniciosos que lhe eram imputados seriam provenientes dos seus praticantes marginalizados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.). No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reação à repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticas de resistência, delineadas à base de despistes e simulações para enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lugares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quando e onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticas eram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, que também incluíram entre suas iniciativas de resistência a negociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação (sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamente não faltaram conflitos entre os capoeiristas e as forças policiais, cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros, que tinham como trunfo maior conhecimento da geografi a das ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo.
A história da repressão também enriqueceu o imaginário popular com narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderes sobrenaturais, como seres humanos capazes de se transformarem em paus, plantas e animais quando perseguidos. Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam os dados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidade do Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram mais infl uência e participação na vida cotidiana do que em qualquer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da época dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (grupos de capoeira adversários entre si) em conflito com elas próprias e a policia, para demarcarem geografi camente parte da cidade, com o fi m de exercerem o domínio e o poder paralelo. As notícias desses jornais acusam a veemente participação dos capoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, como na vida política, com sérios envolvimentos em eventos como a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Foi muito por conta do comportamento social dos capoeiras no Rio de Janeiro que se justifi cou a inclusão da capoeira como crime no Código Penal da República.
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